No fim do inverno - Capítulo 03
Meu Lugar.
— O Reino de Nordisch está aumentando seu poder militar.
A voz fria de Lichena foi dirigida a Kallion.
Se você é o Príncipe Herdeiro, deveria ao menos entender os assuntos internacionais. Se tivesse cérebro, seria capaz de conectar o ‘aumento militar de Nordisch’ com a ‘aliança matrimonial repentina’. E deveria compreender que, para um bem maior, o sacrifício de uma pessoa às vezes é necessário.
Aquela única frase carregava todas essas implicações. Infelizmente, Kallion não atendeu nem às suas expectativas mais baixas.
— E daí?
Sua resposta idiota não demonstrava nenhum traço de compreensão.
— …
Lichena olhou para ele com evidente desgosto. Ao mesmo tempo, sentia uma irritação avassaladora pelo marido, que estava disposto a se jogar nos braços de outra mulher sem pensar duas vezes.
— Alteza.
Com ousadia, Lichena agarrou o queixo do Príncipe Herdeiro, forçando-o a olhar em seus olhos e ouvir cada palavra com clareza.
— Chegou um relato de que a grama está crescendo na Terra da Morte. É um sinal de que a terra está se recuperando.
— Qual é o problema?
Agora estava claro que ele havia cochilado durante o relatório. Kallion piscou como se ouvisse aquilo pela primeira vez, algo que já deveria saber como Príncipe Herdeiro.
— A fronteira entre Norte e Sul está se tornando nebulosa. Suspeitamos que Nordisch esteja fortalecendo seu exército porque cobiça as terras férteis do Sul.
— Então, com base numa mera suspeita, você está enviando Eunice?
— Não é apenas uma suspeita. Até o Reino de Candel chegou à mesma conclusão e propôs uma aliança matrimonial. O Rei de Nordisch escolher Tranche em vez de Candel é uma boa notícia para nós, Vossa Alteza.
Tudo o que ela disse estava certo. Eunice, parada a alguns passos de distância e ouvindo tudo, mordeu o lábio inferior.
O sacrifício de uma pessoa, pela paz.
Ela ainda estava dominada pelo pensamento amargo: ‘Por que tem que ser eu?’ Mas, em sua mente, ela entendia perfeitamente a situação.
Mesmo com Lichena explicando tudo tão claramente, Kallion ainda se enfureceu.
— Então mande outra pessoa!
Enquanto ele fazia mais um escândalo, Eunice o encarava com os olhos vazios de emoção.
Não havia mais ninguém para enviar.
O ambiente hostil. O rei cruel e violento. Esses dois fatos afastariam a maioria das candidatas, e a noiva escolhida precisava ser de uma família nobre e respeitável.
Nenhum nobre em sã consciência enviaria sua filha para Nordisch. A única opção adequada era Eunice, tratada como um fardo pela própria família.
— Então, Alteza, vá pedir ao rei. Mas é melhor se apressar se quiser trocar a noiva.
A voz de Lichena era fria como gelo. Kallion hesitou, olhou para Eunice, e percebendo que o tempo era curto, saiu correndo pelo mesmo caminho que veio.
Só Eunice e Lichena permaneceram no corredor. Um silêncio desconfortável se instalou por um momento.
— Senhorita Pavlone, você é sem vergonha ou notavelmente controlada?
— …
Eunice levantou a cabeça e olhou calmamente para Lichena. A franqueza daquele olhar claramente desagradou Lichena, que soltou um sorriso torto.
— Se ao menos você tivesse algum defeito. Mas a obsessão unilateral de Sua Alteza é tão óbvia que tive que me esforçar muito para mantê-la fora de vista.
— Como você conseguiu aguentar todo esse tempo sem me descartar?
Eunice tentou manter a compostura enquanto perguntava. Um pequeno riso sarcástico escapou dos lábios de Lichena.
— Bem.
Ela olhou Eunice de cima a baixo, como se conferisse uma lista.
— Agora que me livrei de todo aquele apego patético, suponho que isso não seja um resultado tão ruim para você.
— Devo agradecer?
Os cílios de Eunice tremeram levemente. Lichena captou isso com um olhar desdenhoso, emitindo uma ordem fria.
— Nem se incomode. Apenas vá embora o mais rápido possível.
Com essa rejeição fria, Lichena virou e saiu. Eunice não conseguia tirar os olhos da figura que se afastava, até que, finalmente incapaz de conter a onda de emoção, inclinou a cabeça para o céu.
‘Há um lugar para mim sob este vasto céu?’
Seus olhos ficaram vermelhos de lágrimas não derramadas.
🌸🌸🌸
“Ela é uma criança amaldiçoada que devorou a própria mãe.”
“Um patinho feio que não merece o nome da Casa Pavlone.”
“Só de olhar para ela me dá raiva.”
“Ela não pertence aqui. É como um objeto estranho.”
Sombras escuras cercavam Eunice, apontando e zombando. Ela cobriu os ouvidos com as mãos e lutou desesperadamente.
Não vou me deixar abalar por essas palavras.
Mari sempre lhe dizia que ela herdara o coração lindo da mãe. Que era uma criança preciosa.
Quanto mais ela lutava, seu corpo encolhia, como se o tempo estivesse retrocedendo. Logo, ela era uma criança pequena novamente, e as sombras cruéis ao seu redor só aumentavam.
“Inútil!”
“Que incômodo. Teria sido melhor se ela nunca tivesse nascido.”
“Só de estar perto de você já é desconfortável. Aff, irritante.”
Dedos apontando. Provocações. Maldade.
Como alguém enfiando gravetos em seu coração.
A pequena Eunice nem sabia como se defender. Ela apenas tremia e soluçava, impotente.
O mundo era grande demais para uma garotinha tão pequena.
Sua madrasta e meio-irmãos faziam parte de sua vida desde suas primeiras memórias. Se Mari não estivesse lá, ela talvez teria acreditado que era normal ser tratada assim.
Foi então que uma luz brilhante apareceu.
Mari chegou como uma heroína, afastando as sombras. Ela se ajoelhou diante da pequena Eunice trêmula e estendeu uma mão calorosa. Quando Eunice levantou o rosto marcado por lágrimas, Mari a envolveu em um abraço gentil.
Ela era pura luz.
Mas no momento seguinte, aquela luz começou a desaparecer.
“Quão linda nossa jovem senhora será quando crescer… Ela já é tão bonita…”
“Mari, dói muito?”
“Estou bem, minha senhora.”
“Hoje eu não briguei com Sophia ou Philip. Dividir meus brinquedos. Como você disse, pensei na sujeira e saí de perto quando eles queriam brigar. E vim até aqui.”
“Muito bem.”
“Então, Mari, você não pode me deixar. Você tem que melhorar. Você tem que ler para mim de novo.”*
“Claro… Cof cof…”
Mesmo naquela idade, Eunice sabia que Mari não melhoraria.
Mas ela não podia perder a esperança. Mari era tudo o que tinha. Sua única luz.
Segurando uma pequena flor silvestre que colheu com mãos trêmulas, Eunice a colocou na palma da babá. Mari disse que era tão bonita que lhe dava força.
Isso era uma mentira.
A mão que segurava a flor murchou rapidamente, como se a vida tivesse sido sugada.
“Mari, o céu está tão bonito hoje!
Mari, guardei isso do jantar para você.
Mari, como você está se sentindo?
Mari… Mari?
Por favor, diga algo…”
A luz se foi. Engolida completamente pela escuridão. Eunice, agora uma criança sozinha no vazio, soluçou até não conseguir respirar.
Assim como seu peito estava prestes a desabar de dor, Eunice acordou, sentindo como se tivesse se afogado em suas próprias lágrimas. Um líquido quente escorria do canto de seus olhos, molhando o travesseiro.
— … Foi um sonho.
Como um sonho poderia ser tão vívido? Seu coração ainda doía como se tivesse acontecido de verdade.
Eunice soltou um suspiro pesado e sentou-se na cama. O ar pálido do amanhecer parecia envolvê-la suavemente.
Enxugando o rosto com o dorso da mão, sua expressão estava calma.
— Foi bom te ver de novo depois de tanto tempo. Eu me pergunto se você está me observando do céu.
Sem saber para onde enviar sua saudação, murmurou enquanto olhava pela janela. Então, com um sorriso leve e autodepreciativo, olhou para baixo.
— Você foi tão preciosa para mim… como a vida é cruel.
Quatorze anos desde que perdeu Mari, e mal conseguia lembrar de seu rosto. Se soubesse que isso aconteceria, teria mandado fazer um retrato.
Tarde demais para isso.
Mas realisticamente, como uma menina de sete anos, rejeitada pela própria família, poderia contratar um artista? Especialmente para pintar uma empregada?
Eunice afastou-se da janela e se aproximou de uma estante no canto do quarto. Talvez por sonhar com Mari, queria revisitar aquelas memórias desbotadas.
— Faz tempo que não nos vemos também.
Ela passou suavemente os dedos pela capa de um velho livro de contos de fadas. Poeira e tempo grudavam em suas pontas.
Era seu livro favorito quando criança.
O som das páginas sendo viradas perturbou o silêncio do amanhecer.
Embora já soubesse a história de cor, Eunice leu devagar. Um herói corajoso derrota um grande mal e salva o mundo. No final, ele parte sozinho para uma terra coberta de gelo.
— Uma terra de gelo…
Talvez porque logo partiria para Nordisch, seu coração estremeceu com uma simples história infantil.
A terra de gelo a fez pensar em Nordisch. O mal monstruoso, embora dito existir apenas em tempos antigos, a fez lembrar de Johannes.
— Johannes Reinhardt…
Fechando o livro, Eunice voltou-se para a janela que dava para o norte.
Por favor, Deus…
Que ele não seja tão terrível quanto os rumores dizem. Mesmo que seja violento, que não machuque sua esposa. E não tenha gostos estranhos na cama.
Uma vez que começou a orar, a lista parecia não ter fim.
Continua…
Tradução Elisa Erzet